Por: Prof. Dr. Marcos Vasconcellos
Não é exagero afirmar que economia mundial esteja passando por um dos seus maiores testes. A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) se mostra como um daqueles eventos raros na história, mas cujos impactos tendem a ser significativos, ainda que incertos, no curto, médio e longo prazo. Utilizando o conceito de Nassim Taleb, o mundo sofre os efeitos de um evento “cisne negro”.
Observa-se um esforço amplo dos mais diversos campos da ciência em produzir conhecimento que ajude a humanidade a superar o momento. Na linha de frente, as ciências da saúde buscam freneticamente encontrar meios de compreender e enfrentar a doença COVID-19.
Já a economia tem procurado auxiliar a formulação de ações não-farmacológicas e de mecanismos capazes de mitigar os efeitos sobre a renda e as atividades econômicas, mas também antever o período pós pandemia. O fato de a velocidade e intensidade da pandemia ter envelhecido precocemente todos os cenários econômicos antes assumidos torna essa missão mais desafiadora. O novo coronavírus tem produzido ondas de choque de incerteza no ambiente econômico. Apesar desse contexto, algumas ponderações são possíveis.
Desajuste entre oferta e demanda
A elevada taxa de disseminação do novo coronavírus e os efeitos da COVID-19 sobre a saúde mesmo que da minoria dos infectados se mostraram capazes de impulsionar, em um curto espaço de tempo, uma demanda por atendimento médico muito além da capacidade de oferta médica presente na maioria dos países. Tal situação adicionada à falta de um arsenal farmacológico adequado ao combate de casos de maior gravidade da COVID-19 rapidamente se mostraram capazes de induzir o colapso nos sistemas de saúde e ameaçar a vida de milhares de pessoas.
Sem entrar no campo da infectologia, já deve estar claro para os economistas de que o desequilíbrio entre a demanda e a oferta de serviços de atendimento médico tem se mostrado um fator a influenciar a taxa de letalidade da doença em diferentes localidades. Assim, o esforço para se evitar o colapso do sistema hospitalar torna-se premente. Como a capacidade de ajustar o lado da oferta, em especial no caso de uma pandemia global, mostra-se limitado, resta à sociedade e aos seus governantes procurar administrar o lado da demanda.
Diante desse quadro, o princípio da prudência tem emergido. Diversas países e localidades passaram a impor à sua população a única opção por enquanto disponível para impedir que o impacto da COVID-19 seja catastrófico: a adoção do denominado distanciamento social. Embora diante de um cenário mergulhado em incerteza no qual o princípio da precaução recomende que o distanciamento social seja o mais amplo e profundo possível, nem todos os governos nacionais ou locais o seguiram de imediato.
No entanto, o triste desenrolar dos fatos tem se imposto às veleidades ideológicas de líderes nacionais, casos, por exemplo, dos EUA e da Inglaterra, ou a uma imaginária concepção de “nossa sociedade é diferente”, caso da Suécia. Passados quatro meses do início da crise do coronavírus, atualmente poucos governantes nacionais ainda continuam a negar ou a minimizar a gravidade da situação provocada pela COVID-19 na saúde pública.
Falso dilema entre economia ou saúde
Em situações mais graves, como Itália e Espanha, ou nas quais os líderes políticos foram mais assertivos no combate à ameaça da pandemia, como na Nova Zelândia, o distanciamento social tem tomado a forma de isolamento social, colocando a maior parte da população em quarentena. Seja distanciamento ou isolamento social, o esforço para preservar vidas tem tido como corolário a interrupção de diversas atividades econômicas. Até mesmo as atividades consideradas como essenciais têm sido afetadas. E mesmo que a cadeia de produção não seja diretamente afetada pela pandemia, a paralisação do comércio e, por conseguinte, das vendas transmite a crise para a produção. E o próprio choque de incerteza produzido pela pandemia já deixa uma recessão econômica contratada para os próximos trimestres. A crise de saúde vem acompanhada da debacle econômica.
É importante ressaltar que as experiências corrente e histórica mostram inexistir um trade-off entre as duas crises, ou seja, não se reduz o impacto econômico da pandemia aceitando-se uma disseminação mais rápida do coronavírus. Ao contrário, como mostraram Correia, Luck e Verner (2020), no trabalho intitulado “Pandemics depress the economy, public health interventions do not: evidence from the 1918 Flu”, há evidências de que durante a pandemia da gripe espanhola, em 1918, as cidades norte-americanas que agiram com mais rigor no combate à doença e à contaminação apresentaram tanto menor prejuízo econômico durante a pandemia quanto uma recuperação mais robusta posteriormente.
Areia nas engrenagens da economia global
No plano internacional, os efeitos se agravam. Diversas cadeias de suprimentos são impactadas e as engrenagens da economia mundial deixam de funcionar adequadamente. A queda no comércio internacional tem se acentuado e, por essa via, o fantasma da paralisia econômica se dissemina pela economia mundial e lança sombras para o período pós pandemia.
Recuperar o crescimento econômico será mais desafiador em um cenário de menor comercio internacional e com a adoção de restrições sanitárias que obrigarão a diversas alterações nas alocações de recursos, muitas nem sempre em direção a maior eficiência. Todas as atividades econômicas dependentes de alguma forma de aproximação social sofrerão para voltar ao nível anterior ao da pandemia. Provavelmente diversos e importantes processos produtivos precisarão ser revistos com a busca por fornecedores locais. E o movimento de contínua redução de custos de produção industrial poderá ser interrompido.
A imperativa e urgente ação do Estado
No curto prazo, o necessário distanciamento social vem afetando a vida de milhares de indivíduos cuja fonte de renda estava de alguma forma ligada à circulação de pessoas e à aproximação social. Em países, tal qual o Brasil, nos quais as relações econômicas, especialmente as de trabalho, carecem de uma rede de proteção social, a paralisação de diversas atividades implica imediata perda de emprego e renda. O colapso da economia pode se transformar em um colapso social se não for agilmente remediado por meio de ações do Estado.
Sistemas de seguro-desemprego e de complementação de renda necessitam ser e estão sendo urgentemente acionados. E, na medida do possível, precisam ser direcionados e reforçados especialmente para os segmentos da população com maior vulnerabilidade socioeconômica. A paralisação das atividades econômicas pode até atingir a todos igualmente, mas suas consequências são muito mais graves para aqueles com vínculos informais de trabalho e que desempenham atividades intermitentes, ou seja, a parcela mais pobre da população. A desigualdade de renda já existente tende a se aprofundar sem a ação do Estado.
A necessidade da entrada em ação dos estabilizadores de renda se soma à expansão dos gastos com saúde e ambos pressionam as despesas públicas. Ao mesmo tempo, a paralisia das atividades econômicas reduz as receitas estatais nas diferentes esferas de governo. A deterioração fiscal deve ser tratada como o normal em uma situação excepcional. E parte do custo do ajuste deverá ser repassada para as gerações futuras sob a forma de maior dívida pública.
As consequências econômicas da Pandemia
A experiência das décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial impede afirmar que a alta da dívida pública necessariamente resultará em menor crescimento econômico no longo prazo. Diversos países apresentavam elevados níveis de dívida pública em 1945 e isso não impossibilitou a recuperação econômica global observada na sequência. Porém, há uma significativa diferença entre a anormalidade econômica gerada pelo conflito mundial da década de 1940 e a crise corrente. Naquela ocorreu enorme destruição do estoque de capital em algumas das mais importantes economias do mundo e, findo o conflito, houve ondas de gastos com investimentos que ajudaram a recuperação da economia global. Não é esse o caso da atual crise. Ao contrário, a tendência é ocorrer uma depressão no nível de investimento.
A interrupção das atividades econômicas deixará sequelas. Do lado da oferta, as empresas terminarão essa crise com poucos recursos em caixa, obrigando-as a rever projetos de investimentos. Outras, debilitadas financeiramente, mas com bons ativos, serão alvos para o processo de concentração de mercado que deverá ocorrer em diversos setores da economia. As mais frágeis irão desaparecer. Do lado da demanda, a tendência é ocorrer um aumento do endividamento e empobrecimento médio das famílias.
Assim, a junção dos ajustes de oferta e de demanda será a normalização da demanda agregada em um patamar e ritmo mais brando do que o observado na fase antecedente à pandemia. A própria confiança dos agentes econômicos irá se recuperar apenas lentamente. Essas tendem a ser as implicações de médio prazo da crise.
Nuvens no horizonte
Mais difícil é prever os impactos nas tendências econômicas de longo prazo. Afinal, eles são contingentes às soluções que a ciência da saúde conseguirá desenvolver para lidar com a COVID-19. Existindo fármacos ou vacina capazes de levar a taxa de mortalidade dessa enfermidade para níveis insignificantes, as relações econômicas internacionais tendem a se normalizar, seja no comércio ou no turismo. Do contrário, tais atividades, entre outras, serão restabelecidas em patamares inferiores aos observados nas últimas décadas.
Mesmo no melhor cenário, as cadeias globais de produção podem sofrer readequações que ampliem, quando possível, a presença de fornecedores locais, até para que os grandes conglomerados aumentem a segurança de suas linhas de produção com fornecedores redundantes. Os setores do comércio, turismo, entretenimento e da educação, por exemplo, podem ser impactadas com a aceleração da utilização de novas tecnologias. No mundo do trabalho, uso de tecnologias capazes de substituir atividades humanas deve se aprofundar.
Em suma, além do seu grave impacto sobre a saúde pública, a COVID-19 tem o potencial de provocar alterações nas preferências dos consumidores, interrupções e revisões nas estruturas de oferta, choques negativos de produtividade, irrupção de ondas de incerteza, quedas de confiança e destruição do emprego em todo o mundo. Infelizmente, uma conjugação nada alvissareira. Mas as suas consequências finais dependerão de quais posicionamentos políticos emergirão com mais força para ditar os rumos econômicos e sociais ao término do surto de coronavírus.
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